domingo, 10 de julho de 2016

MARIA AUXILIADORA LARA BARCELLOS (DORA)


“Me chamo Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Apelido Dorinha-Dora-Dorinha ou Doralice. Tenho 30 anos, nasci e me criei no Brasil, pra onde irei voltar apesar de você. Sou um dos mais autênticos produtos nacionais, nasci em Antônio Dias, Minas Gerais, pra seu e nosso governo, amém. Num quarto de pensão – destino -, meu pai tava de passagem e minha mãe sempre em sua, sempre em sua, sempre em sua companhia. E a gente, por que não? Afinal, a maioria no Brasil está de passagem, procurando seu posto definitivo, mas as aranhas  e piranhas não dão chance, não dão sossego”[1] (Dora)

“A minha sogra mexia lá na favela. Então levou a Lena[2] e a Dora pra dar aula lá junto com ela. Dava aula pras crianças lá. Acho que ela tinha 15 ou 16. Ela falava sempre que era uma miséria danada. Lá na favela ela sentia demais (...) num era a pobreza não, era a miséria né.” [3] (Mãe de Dora)

“Toda vida ela falava que queria ser médica; estudar medicina. (...) Ela fez o vestibular, na escola de medicina e passou em terceiro lugar (...). Ela começou a dar plantão no Galba Veloso. Ela era responsável por sessenta crianças. Tinha dia que ela chegava em casa assim, triste né. Ela falou assim:
- Tão triste mãe, que os meninos estão comendo uma lavagem (...). Lá os doentes são tratados muito mal (...).
Foi lá e falou com o chefe, o diretor, então ele falava:
- Você para de falar, que você vai ser presa, vai ser incluída (...) subversão”[4](Mãe de Dora)

“Aí ela foi. Arrumou uma malinha e foi embora (...). Deixou uma carta escrita com a Maria Helena (...). A carta falava pra Helena que ela ia embora e que ninguém ia saber onde ela tava” [5](Mãe de Dora)

“A Chica[6], que foi presa comigo, foi pro camburão, convenceu os policiais a deixá-la voltar ao sobrado e convencer o Chael a se render e eles permitiram isso; preferiram isso do que o risco de um tiroteio. Só que ela voltou, subiu, que era um primeiro andar, também apanhou revólveres; nós tínhamos muitos no aparelho e começou a atirar”[7](Espinosa falando de Dora)

“Nós reagimos até que se acabasse a munição que tínhamos em casa (...). Havia uma pistola 45, uma winchester, revólver 38, 32, bombas de fabricação caseira. Todo esse material que se utiliza na guerrilha urbana (...). Eu tinha um pouco de raiva por ter sido presa naquelas condições, porque achava que tinha sido enganada, mas medo? Não!”[8] (Dora)

“(...) Um deles buscou uma tesoura e enterrou na ponta dos seios e disse que ia cortar os seios (...). Ao mesmo tempo eu tava levando bofetadas e palmatória. (...) Me jogavam contra a parede, socavam minha cabeça. (...) Depois começaram a aplicação de choque seco, que é o choque sem... sem água. Aplicaram, mais ou menos, uma meia hora esse tipo de choque (...). Depois me deitaram no chão; jogaram baldes de água e continuaram.”[9] (Dora)

“Ela pulou do carro de cabelinho curtinho, que eles cortaram. Vestido aberto assim... Chinela de uma das meninas e um outro chinelo (...) Quando eu vi a Dorinha saí, encontrei com ela. Abracei ela e eu ficava procurando:
- Onde é que eles te machucaram? Que que foi que eles fizeram com você?
- Mãe, não chore! Eles não merecem!”[10] (Mãe de Dora)



             “Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Apelido Dorinha-Dora-Dorinha ou Doralice”. No dia em que foi presa era Chica. Muito bem, já viram aqui alguma coisa sobre a Dora pelos que lhe eram próximos e até por ela mesma. Aqui exporei minha opinião sobre quem era essa mulher baseado, é claro, no que andei lendo, vendo, fuçando. Aqui vai apenas um texto escrito da forma mais sintética que consigo.
            O Brasil da ditadura... Em meio a uma repressão que forçava o povo a calar-se quando se tratava a divergências em relação à política, algumas pessoas eram bem teimosas e lá estavam falando, apontando erros. Foram presos. Alguns outros entenderam que para enfrentar um inimigo armado deve-se usar de armas. Grupos armados inspirados nas ideias de guerrilha urbana e rural para derrubar a ditadura então vigente se formaram e foram a luta. A Ditadura foi implacável e muitos jovens intelectuais da época foram assassinados. Os desaparecidos... Quantos são afinal? Hoje, porém, não vim escrever sobre os desaparecidos ou os mortos que eram atropelados em “simples acidentes de trânsito”, mas que tinham os corpos furados de balas. Não sei como é que é isso, mas, como disse, vim falar de Dora.
            VAR-Palmares era a organização da qual fazia parte. Estava em uma função mais de apoio. Não era encarregada de ir à luta diretamente, o que não a impediu de ludibriar os agentes do DOPS[11] no ato de sua prisão e meter fogo contra os mesmos juntamente com Chael[12].
Torturada, não entregou pontos[13], aparelhos[14], nomes ou planos da VAR-Palmares. Ficou meses com sua nudez exposta, teve sua dignidade solapada como tantos outros e outras que lutaram pelas coisas que acreditavam.
            Em 07 de dezembro de 1970 o embaixador da Suíça foi sequestrado pela VPR[15] e, para devolver o embaixador com vida, exigiu-se do governo brasileiro que 70 presos políticos fossem libertados. O nome de Dora fazia parte da lista e, em 13 de janeiro de 1971, 70 brasileiros eram banidos para o Chile.
            Vida nova... Alguns continuaram a militância no Chile. Estavam com os pés lá, mas os corações e a cabeça continuavam no país que os havia banido. Dora estava mais convencida ainda de que não existia forma de combater a ditadura senão com um fuzil.[16] Reinaldo Guarany[17] recrutara-a para a ALN[18], grupo guerrilheiro do qual fazia parte e que, juntamente com a VPR, podem ser considerados os grupos de viés mais... Digamos... Xiita, que mais ia pra porrada por assim dizer.
           
“Eu era criança e idealista. Hoje sou adulta e materialista, mas continuo sonhando.” [19]

            Dora tinha a capacidade de se indignar com as injustiças sociais como fica explícito nas citações de dona Clélia que pus no início desse texto, mas a caridade pura e simples, a tentativa de minorar as mazelas sociais através de ações pontuais de ajudas específicas a Fulano, Sicrano ou mesmo Beltrano deixou de trazer paz a Dora[20] e, quando em contato com estudos marxistas, percebeu que as mazelas que a incomodavam, a fome, desnutrição, à falta de acesso a educação, a impossibilidade de ação do povo na decisão dos rumos do país devido à política existente a época; todas essas coisas só seriam sanadas se as bases desse sistema que reproduz a desigualdade social fossem totalmente destruídas e nascesse daí um novo sistema em que o povo passasse a ser senhor de si mesmo. “Eu era criança e idealista. Hoje sou adulta e materialista, mas continuo sonhando”. Foi presa por esse sonho e expulsa[21] do país.
O Chile acolheu os brasileiros. Havia ali um governo eleito pelo povo que dizia claramente que o objetivo era chegar ao socialismo sem que houvesse a necessidade de armas. Muitas forças conspiraram contra essa ideia[22]. O Presidente do Chile era Allende e tinha seu poder alicerçado no povo, mas em 11 de setembro de 1973 o palácio presidencial foi bombardeado com o presidente dentro. O Chile caía nas mãos de Pinochet e a caça aos comunistas, socialistas, militantes de esquerda e o diabo a quatro tornou-se intensa. Os Setenta[23] eram vistos pela repressão chilena como aliados de Allende e soldados comunistas altamente treinados pela prática efetiva de combate aos militares brasileiros e, portanto, muito perigosos.
            O Chile banhou-se em sangue. O Estádio Nacional do Chile foi usado para manter presos sob a mira de fuzis e todos os dias em seus “porões” aumentava o número de corpos.
            Dora e Guarany conseguiram refúgio na embaixada do México para onde voaram, mas sem serem aceitos no país e com prazo de duas semanas para deixá-lo. França e Bélgica seriam refúgios passageiros até que finalmente se fixaram na Alemanha Ocidental[24].
            A igreja evangélica alemã mantinha um programa de bolsas para estudantes do terceiro mundo o qual Dora fora inserida juntamente com seu companheiro Reinaldo Guarany. A vida seguia. Dora voltava a estudar medicina (psiquiatria).
         Ainda na Alemanha não foram inteiramente aceitos. O pedido de asilo político era protelado. Receberam apenas um papel que dizia que eles eram apátridas. Não tinham permissão para sair de Berlim. A Alemanha Ocidental não era muito simpática a guerrilheiros comunistas e, há de se pesar também que o fato de Reinaldo Guarany ter participado do sequestro do embaixador alemão pode ter atrapalhado um pouco as coisas. Na Alemanha o cara foi processado até por bigamia.
            Apesar disso Dora vinha levando a vida. Sempre teve facilidade de se relacionar com as pessoas e de se adaptar aos locais por onde passava. Era alegre, disposta a aprender e a aceitar as culturas dos países por onde passou. Tinha uma moral rígida, ética firme. Uma mulher determinada, decidida.
            Quem pode dizer o que se passava na cabeça de Dora naquele dia primeiro de junho de 1976? Alguma coisa havia quebrado na mente de Dora. Dois meses antes tivera um surto e precisou ser internada; foi voluntariamente, mas convencida pelo pastor Dressell[25]. Depois de um tempo, saíra, mas continuava o tratamento.
Naquela primeira manhã do mês de junho Dora se despediu de Guarany dizendo que ia a clínica... Chegou à estação do metrô e se atirou na frente do primeiro trem.
                       
“Você, minha filha, teve uma vida curta, mas viveu intensamente. Viveu mais do que muitos que vivem 100 anos. Você fez o que estava no seu coração.
Ela falava comigo: Se eu não falar alguma coisa mamãe, eu serei uma covarde.
Eu falei: Você é a minha palmatória do mundo!
Ela falava: Não é hoje, não é amanhã, quinhentos anos, mil anos. A história do país muda é assim; é devagar, com o sofrimento de quem tem força pra sofrer”.[26] (Dona Clélia, mãe de Dora)

“Ao massacre sofrido pela Maria Auxiliadora (...) Eu imputo isso a... também a desagregação psíquica que ela sofreu em consequência dessas violências que não foram apenas físicas, mas violências de natureza moral e psicológicas”[27](Espinosa)

Na verdade, Maria Auxiliadora foi morta por aqueles que a haviam torturado de maneira horrível, sete anos antes, em prisões brasileiras. A enfermidade psíquica, em 1976, sem dúvida fora consequência das tormentas físicas e psíquicas que a então moça de 25 anos tivera de sofrer nos seus dois anos de prisão, martírio que a levou até o limite da loucura e mais além.”[28] (Dressell)

”Não sei se sorria ou chorava (...) ela foi caminhando entre as flores do parque do nosso Wohnheim, confundindo-se com os brilhos da noite passada, que ofuscavam meus olhos. E eu nunca mais a vi.”[29] (Reinaldo Guarany)

“Me chamo Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Apelido Dorinha-Dora-Dorinha ou Doralice. Tenho 30 anos, nasci e me criei no Brasil, pra onde irei voltar apesar de você”.

           
Dora voltou para o Brasil mais de 10 dias depois de sua morte num caixão fechado. Havia um impasse se o corpo podia ou não voltar uma vez que ela tinha sido banida. Prevaleceu a tese de que o banimento só era válido em vida e o corpo de Dora pôde ser enterrado pela família e amigos aqui no Brasil.
É difícil entender o que se passava na cabeça de Dora eu já disse, mas uma mulher que viveu um tempo em que as revoluções explodiam em todos os cantos, que parecia possível destruir a sistemática de reprodução de injustiça social; que lutou, que tentou a revolução... Em 1976 já não parecia mais possível vencer os militares pela força. Os grupos guerrilheiros haviam sido exterminados. Dora, longe da maioria dos amigos, talvez já não tivesse amparo e nem um ideal e, além do mais... Porra, não dá talvez nem pra fazer conjeturas então, para não fazer suposições levianas termino por aqui e deixo vocês apenas com a expressão da dor de sua mãe em seu enterro:

“Aí eu falei: Você vai ficar aqui eternamente. Aqui é o seu lugar e agora ninguém põe a mão em você mais”.[30]







[1] Brasil 1964/19??, Memória do exílio . Obra Coletiva dirigida e coordenada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos.  O trecho é da página 315 e é o Depoimento de Maria Auxiladora Lara Barcellos.
[2] Refere-se a Maria Helena, irmã de Dora.
[3] Entrevista realizada pelo programa Memória e Poder com Clélia Lara Barcellos, mãe de Dora.
[4] Entrevista realizada pelo programa Memória e Poder com Clélia Lara Barcellos, mãe de Dora.
[5] Entrevista realizada pelo programa Memória e Poder com Clélia Lara Barcellos, mãe de Dora.
[6] Os guerrilheiros , obviamente, não usavam o nome verdadeiro. Quando alguém do grupo era preso, todos que corriam risco de ter seus nomes revelados trocavam os nomes; dessa forma a maioria dos guerrilheiros adotaram vários nomes enquanto persistia a luta.
[7] Depoimento dado por Antônio Roberto Espinosa na Comissão Nacional da Verdade falando sobre a prisão e tortura NA Vila Militar, Chael Charles Shairer, Ele mesmo e Maria Auxiliadora Lara Barcellos
[8] Depoimento dado por Antônio Roberto Espinosa na Comissão Nacional da Verdade falando sobre a prisão e tortura NA Vila Militar, Chael Charles Shairer, Ele mesmo e Maria Auxiliadora Lara Barcellos.
[9] Dora, no documentário: Report on Torture.
[10] Entrevista realizada pelo programa Memória e Poder com Clélia Lara Barcellos, mãe de Dora. Na citação em questão, dona Clélia fala de uma visita que fez a Dora já na prisão após passaram os momentos mais críticos do “interrogatório”.
[11] Departamento de Ordem Política e Social. (Uma polícia política)
[12] Preso com Dora e Espinosa, morrera em seguida na Vila Militar sob tortura.
[13] Quando um guerrilheiro marcava um encontro com outro, algo que deveria ser secreto com data e horários bem precisos. Caso um ponto fosse descoberto pela polícia podia significar prisão e tortura ou até morte daqueles que tinham um marcado esse encontro.
[14] Local onde moravam por algum tempo alguns integrantes de um grupo guerrilheiro.
[15] Vanguarda Popular Revolucionária.
[16] Conversas minhas com Reinaldo Guarany.
[17] Vivera com Dora entre idas e vindas de 1971 até 1976
[18] Ação Libertadora Nacional
[19] Texto de Dora em: Brasil 1964/19??, Memória do exílio . Obra Coletiva dirigida e coordenada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos.  O trecho é da página 315 e é o Depoimento de Maria Auxiliadora Lara Barcellos.
[20] Conclusão minha.
[21] Todos os presos políticos trocados por embaixadores sequestrados no período da ditadura militar brasileira foram oficialmente banidos do país, perdendo inclusive a nacionalidade.
[22] Documentário “A Batalha do Chile”
[23] Os brasileiros trocados pelo embaixador da Suíça eram chamados dessa forma no Chile.
[24] Aos mais novos, a Alemanha fora dividida após a Segunda Guerra Mundial em Ocidental (capitalista) e Oriental (comunista). A divisão perdurou até 1990.
[25] O mesmo que lhe fornecera a bolsa de estudos.
[26] Entrevista realizada pelo programa Memória e Poder com Clélia Lara Barcellos, mãe de Dora.
[27] Depoimento dado por Antônio Roberto Espinosa na Comissão Nacional da Verdade falando sobre a prisão e tortura NA Vila Militar, Chael Charles Shairer, Ele mesmo e Maria Auxiliadora Lara Barcellos.
[28] DRESSELL, Heinz; In Memoriam Maria Auxiliadora Barcelos Lara (Dressel foi o pastor que conseguiu bolsa de estudos para Dora.)
[29] GUARANY, Reinaldo; A Fuga
[30]Entrevista realizada pelo programa Memória e Poder com Clélia Lara Barcellos, mãe de Dora.





BIBLIOGRAFIA


Pedro Chaskel e Luiz Sanz: Não é hora de chorar . https://www.youtube.com/watch?v=l1bZZ1TWepM

Critica comparativa entre os livros “a fuga” e “os fornos quentes” de Reinaldo Guarani http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2258/1397

CARVALHO, Luiz Maklouf; MULHERES QUE FORAM À LUTA ARMADA.

ESPINOSA,  Antônio Roberto Depoimento dado por na Comissão Nacional da Verdade falando sobre a prisão e tortura NA Vila Militar, Chael Charles Shairer, Ele mesmo e Maria Auxiliadora Lara Barcellos:   https://www.youtube.com/watch?v=h9km9Cp-t04


GUARANY, Reinaldo; A Fuga

GUSMÁN, Patrício; A BATALHA DO CHILE. https://www.youtube.com/watch?v=L_JHLTeRHr8

GASPARI, Elio; Ditadura Escancarada

Memória e Poder;  Entrevista realizada pelo programa com Clélia Lara Barcellos, mãe de Dora.    https://www.youtube.com/watch?v=h2J7bkR66yo


Comissão Especial  sobre MORTOS e DESAPARECIDOS POLÍTICOS  http://cemdp.sdh.gov.br/modules/desaparecidos/acervo/ficha/cid/199


HASKELL, Weler; Brasil: Report on Torture. https://www.youtube.com/watch?v=6aUu-zGGg08

UCHÔA, Pedro Celso Cavalcanti e RAMOS, Jovelino; Brasil 1964/19??, Memória do exílio . Obra Coletiva dirigida e coordenada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos.  O trecho é da página 315 e é o Depoimento de Maria Auxiliadora Lara Barcellos.

Em memória de Ringo



Este Blog tem como objetivo falar sobre a Ditadura Militar brasileira, mas eu não poderia deixar de publicar aqui um texto em memória de RINGO que nos deixou na última sexta.


                                                           

               Estava tudo escuro, mas os sons e os cheiros eram bem vivos. Tudo era desconhecido; tudo era uma prisão. Um passo pro lado e um choque contra parede. Caso o passo fosse dado para o lado esquerdo bateria em outra parede; para trás ele teria que dar dois passos até encontrar a terceira parede. Os cheiros vinham mais da frente onde estava uma grade. Havia outros como ele em diversas prisões do tipo. Levava a vida a comer, a mijar e a cagar. Não posso afirmar o que lhe vinha à mente, quais eram seus pensamentos mais loucos. Um dia, pensou, penso eu, que tomaria um banho de sol, mas ele não ficou no pátio. Saiu do presídio e fora apresentado a um cara que disse ser seu amigo e que poderia ir com ele, que teria todas as suas necessidades supridas, que ficaria tudo bem.
                Teve medo. Encolheu-se a um canto do carro. Não sabia se tinha esse medo ou alegria. O futuro era incerto. Tão jovem... Tão dependente e a mercê de alguém que nem conhecia. Chegou ao novo lar. Os cheiros eram diferentes agora. Havia cheiro de grama, de paredes mais distantes, de gente que caminhava e talvez até se governasse. Tantos cheiros e sons novos.
Recebeu abraços. Ele se afeiçoou aos amigos novos e se afeiçoaram a ele; eram um casal e um rapaz em que passava mais tempo com ele e, talvez por isso, também se desentendia mais com este último. As divergências entre eles, por vezes, eram resolvidas por aquele que mais alto se expressava ou mesmo pela força. O juiz era aquele que o trouxe para sua nova morada, mas não decidia quem estava certo e quem estava errado; apenas determinava que a confusão parasse imediatamente. Obedecia. Tinha respeito pelo cara que o tinha tirado da prisão. Gostava de ouvir sua voz. Eram amigos e os dois faziam um ao outro rir. O tempo foi passando. Passaram-se poucos anos e... Um dia sentiu dor. O tempo dele nesse mundo chegava ao fim. O rapaz que estava sempre com ele percebeu primeiro que tinha algo errado, mas não sabia como avisar ao cara que prometera que tudo estaria bem. Talvez tenham se passado horas.
O cara que prometeu que tudo ficaria bem chegou em casa após um dia de trabalho e viu que nada estava bem. Levou-o ao hospital e no dia seguinte a vida já o deixava. Foi muito de repente... Deixa saudade. Até uma outra vida!!

terça-feira, 28 de junho de 2016

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O DESTINO DE BOILESEN

O DESTINO DE BOILESEN

Dois carros seguiam o galaxie branco. Não demorou e o condutor percebeu que algo havia de estranho. Acelerou e tentou uma curva rápida objetivando desvencilhar dos carros já emparelhados. É encurralado.  Um tiro de fuzil atravessa o galaxie e o atinge de raspão. Desce do carro empreendendo fuga o mais rápido que pode em direção a uma feira próxima, mas uma rajada de metralhadora atinge-lhe as costas. Cai na sarjeta.
Carlos Eugênio da Paz[1] aproximou-se rapidamente do corpo ensanguentado. Apontou sua arma para o rosto da vítima. Dizem que foram 25 tiros[2]. O enterro seria em caixão fechado.
Chega ao fim a vida de Henning Albert Boilesen, mas sua história secreta só então começa a ser contada.
Panfletos foram jogados no corpo de Boilesen após a execução, espalharam-se pela rua e a seguinte mensagem era revelada:

"Como ele, existem muitos outros e sabemos quem são. Todos terão o mesmo fim, não importa quanto tempo demore; o que importa é que todos eles sentirão o peso da JUSTIÇA 
REVOLUCIONÁRIA. Olho por olho, dente por dente".[3]
    
         Afinal, quem era esse Boilesen? Por que foi assassinado? Por que tanto ódio? Dizem que havia miolos dele espalhados pelo chão. Como ele, existem muitos...
      Desde de dezembro de 1968[4] vigorava no Brasil o AI5[5] e a oposição ao regime perdeu as possibilidades de diálogo pela via democrática. Grande parte da esquerda resolveu aguardar por dias melhores, mas uma pequena parcela optou pela oposição armada. Grupos guerrilheiros se organizaram e planejaram assaltos a bancos para financiar a luta armada. Os grupos pareciam obter grande sucesso diante do despreparo da policia política (DOPS[6]) em combater os ataques que eram taxados pelo regime como terroristas. O Estado brasileiro parecia perder terreno e os guerrilheiros se sentiam fortes, esta era a percepção dos dois lados. É nesse contexto que surgirá a Operação Bandeirantes (Oban); o envolvimento de Boilesen com a Oban selaria seu destino naquela manhã de 15 de abril de 1971 já descrita neste texto.
Boilesen nasceu na Dinamarca em 1916. Não era oriundo de classe abastada; habitava um conjunto construído para pessoas que por si não podiam ter moradia de outra forma. Gostava de esportes; teria jogado futebol e lutado boxe. Veio para cá após se casar com a filha do cônsul dinamarquês no Brasil. Tinha formação técnica em administração de empresas e contabilidade industrial.
Homem de certo magnetismo. Teria adotado o Brasil como pátria e se adequado perfeitamente ao jeito que o país funcionava e vivido como se sua fosse a nossa cultura. Ia aos jogos do palmeiras e, segundo seu filho Boilesen Jr, chegava a ser preso por brigar na geral do Pacaembu. Falava um português quase sem sotaque e era bem visto e respeitado pelos que o conheciam. Relatos há que dão conta de que não simpatizava com comunistas, que não os queria por perto, que não os queria mesmo existindo. Acreditava que os comunistas eram uma ameaça a ser combatida. No documentário Cidadão Boilesen de Chaim Litewski, em um determinado trecho conta-se que Boilesen ainda menino se deliciara ao observar garotos de sua escola serem punidos pelos professores e que tal fato se dera de forma que os professores não conseguiram ignorar. O documentário, através de depoimentos levanta a possibilidade de haver em Boilesen um lado oculto que poderia sim encontrar certo prazer em assistir suplícios. Aquele homem expansivo, de sorriso fácil, amigável, poderia ter uma face secreta macabra.
Voltemos a falar da Oban. Como disse anteriormente, parecia que os grupos guerrilheiros estavam um passo a frente dos órgãos de repressão. O Exército precisava unir esforços, centralizar esforços para desbaratar os grupos “terroristas”, “caçar” os subversivos, obter informações, garantir a manutenção da ordem social ameaçada pela sensação de insegurança que as ações dos grupos poderiam levar. A Oban se submeteria ao exército, mas tinha seus quadros preenchidos por integrantes de todas as forças armadas, policiais civis e militares. O prédio em que funcionava fora cedido pelo governo do estado de São Paulo e a prefeitura teria ajudado na parte estrutural (asfalto e iluminação pública)[7]. A estrutura física, e o corpo de funcionários estavam então garantidos pelo dinheiro público, mas entendia-se que para as demais necessidades de cunho logístico devia-se também buscar apoio junto ao empresariado, pois eram diretamente interessados no combate aos comunistas.
Reuniões foram feitas com o grande empresariado da FIESP e empresas como ULTRAGAZ, FORD, VOLKSWAGEN, CAMARGO CORRÊA, bancos como ITAÚ e MERCANTIL fizeram contribuições vultosas que possibilitaram à Oban planejar e fazer suas operações. Boilesen que era o presidente da Ultragaz teria sido um contribuinte entusiasta, mas não bastaria para ele contribuir, fazia visitas ao prédio da Oban e não bastava também visitar, do ponto de vista do historiador Jacob Gorender, o industrial deixava seu sadismo aflorar e pessoalmente assistia as torturas realizadas naquele prédio. Sim, a Oban é considerada o órgão que inaugurou a tortura institucional na ditadura, inaugurou a tortura como método para obtenção de informações.
Integrantes de grupos guerrilheiros ou suspeitos de serem, quando presos, eram levados ao prédio. O processo padrão era a nudez. As vítimas eram despidas e, depois de expostas, eram submetidas a choques elétricos, afogamentos, pau-de-arara, espancamentos, cadeira do dragão[8]... Em se tratando de torturas, para fazer com que a vítima falasse, entregasse os companheiros, os aparelhos[9] ou os planos de ação, a criatividade parecia infindável...
O presidente da Ultragaz teria sido responsável por importar dos Estados Unidos[10] um aparelho elétrico que foi apelidado de pianola Boilesen que era um aparelho de choque que funcionava por intermédio de um teclado que lembrava o teclado de um piano.
A associação do industrial com a Oban chamaria a atenção dos guerrilheiros. Um julgamento feito pela ALN e MRT decidira pela condenação a morte, o chamado justiçamento. As acusações eram:
1.      Boilesen colaborava financeiramente com a Oban.
2.      Boilesen participava das torturas da Oban.
3.      Boilesen era agente da CIA[11]
4.      Boilesen cooperava logisticamente nas operações da Oban[12]
Naquela manhã de 15 de abril de 1971, entre integrantes da ALN e MRT eram nove guerrilheiros. Um deles, capturado e morto dois dias depois, Yuri Xavier Pereira escreveria em seu diário:
“O último tiro foi dado a curta distância. Boilesen morrera. Entramos nos carros e iniciamos o trajeto de fuga. Durante a fuga trocávamos olhares de contentamento e satisfação.”
Um ex-militante da ALN, Antônio Carlos Fon, tentaria justificar o sentimento de alegria que pairava na esquerda armada:
“As pessoas ficaram felizes sim com a morte dele. Não dá, não dá pra negar! Dito hoje, parece chocante que você fique feliz com a morte de alguém, mas só quem viveu aquela época, só quem sabe o sofrimento que era ter os companheiros assassinados, o tipo de sofrimento que o Boilesen causava as pessoas, pode entender como e porque as pessoas se alegraram com a morte dele”
Homem fruto de uma época em que capitalismo e comunismo eram aparentemente os dois únicos caminhos, um símbolo da união da elite brasileira com governos ilegítimos onde a democracia na prática era um mero detalhe, embora conservasse importância retórica; Boilesen, a mim parece, acreditava que tudo era  válido pela manutenção da ordem vigente e no combate ao perigo comunista. As mãos de Boilesen estavam sujas de sangue no momento que financiou a Oban e isso foi o determinante em sua execução, mas ele não foi o único. Ele não era uma anomalia no meio social de sua época. Seus executores já haviam alertado:
“Como ele existem muitos outros e sabemos quem são”





[2] Hening Albert Boilesen Junior.
[3] Mensagem de autoria dos grupos ALN (Ação Libertadora Nacional) e MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes).
[4] Os primeiros grupos guerrilheiros surgiram antes do AI5 entretanto. Além dos movimentos sociais que ocorriam com a classe média indo as ruas o Atentado de Guararapes planejado pela AP (Ação Popular) foi usado como argumento para o próprio AI5.
[5] Ato Institucional que aprofundou o golpe de 64. Com o AI o congresso podia ser fechado pelo presidente da república a qualquer momento por tempo indeterminado. Podiam ser cassados os direitos políticos de qualquer cidadão. O habeas corpus para crimes políticos também deixava de existir. As garantias individuais estavam suspensas.
[6] Departamento de Ordem Política e Social.
[7] GASPARI, Elio; Ditadura Escancarada.
[8] A cadeira do dragão era de fato uma cadeira a qual se prendia a vítima (nua). A base, o encosto e os braços  eram de zinco e fios condutores de eletricidade  eram conectados a vítima nos dedos dos pés, língua, orelhas, genitália ou onde quer que o torturador quisesse. Acontecia também de jogarem água na vitima objetivando potencializar o efeito.
[9] Local onde se instalava momentaneamente um grupo ou parte dele. Geralmente não se ficava muito tempo num aparelho; o tempo era bem relativo, pois a qualquer momento poderia-se ter que deixar um aparelho as  pressas.
[10] Existe também a versão de que ele mesmo teria inventado.
[11] Não se sabe ao certo o que levou os guerrilheiros a crer nessa tese.
[12] Carlos Eugênio da Paz, informa no documentário Cidadão Boilesen que vários de seus companheiros que escapavam de cercos reparavam que haviam caminhões da Ultragaz por perto fechando ruas.








BIBLIOGRAFIA

MELO, Jorge José; Boilesen, um empresário da ditadura: a questão do apoio do empresariado paulista à Oban/ Operação Bandeirantes, 1969-1971. UFF-RJ

LITEWSKI, Chaim; Cidadão Boilesen (Filme Documentário)

BATISTA, Wagner Braga; Artigo – Cidadão Boilesen e o Financiamento da Tortura no Brasil. UFCG.

GASPARIN, Elio; Ditadura Escancarada

O corpo de Boilesen após o justiçamento